Notícias

ABM realiza cerimônia virtual de posse de Carlos Kater

Discurso de saudação, na íntegra, da oradora Ilza Nogueira

ABM realiza cerimônia virtual de posse de Carlos Kater
Compartilhe:

A Academia Brasileira de Música realizou no dia 17 de março a cerimônia virtual de posse do acadêmico Carlos Kater. Eleito em dezembro do último ano, o musicólogo, compositor e educador musical Carlos Kater passou a ocupar a cadeira nº 16, que tinha como último acadêmico o saudoso Henrique Morelenbaum, Henrique Alves de Mesquita como Patrono e Ary José Ferreira como Fundador. A solenidade foi transmitida no canal da ABM no YouTube e está disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=tDOpzWFG1Go

A cerimônia contou com o discurso de saudação da Acadêmica Ilza Nogueira, reproduzido a seguir:

Saudação a Carlos Kater

Ilza Nogueira
ABM, 17/3/2023

Boa tarde a todos! Quero, inicialmente, saudar nosso Presidente, Maestro André Cardoso, e todos os confrades e confreiras presentes nesta sessão. Saúdo também, muito especialmente, os familiares e amigos do Professor Carlos Kater, que hoje recebemos em nosso fraterno convívio na Academia Brasileira de Música para ocupar a cadeira 16, substituindo o saudoso maestro Henrique Morelenbaum.

Receber o musicólogo, educador e compositor Carlos Kater como membro desta instituição é mais um dos privilégios que a Academia Brasileira de Música tem merecido desde a sua fundação, em 14 de julho de 1945. Cabe hoje a mim a honra e a grata satisfação de pronunciar a saudação em nome dos acadêmicos a este eminente músico, cuja brilhante carreira eu acompanho desde os últimos anos 1980. Naquela época, recém chegada do Doutorado nos Estados Unidos e reintegrada ao Departamento de Música da Universidade Federal da Paraíba, eu organizava o congraçamento produtivo dos poucos pós-graduados em Música no Brasil. Dentre eles estava o professor Kater, regressando em 1988 de seu estágio pós-doutoral na Sorbonne, cujo tema foi “Música Viva no Brasil”. Esse tema o levou a levantar, organizar, classificar e finalmente microfilmar o acervo de documentos e obras de Koellreutter, e resultou na publicação do livro “Música Viva e Koellreutter: movimentos em direção à modernidade”, publicado em 2001 pela Editora Musa e a Associação Atravez.

Em 1987, quando eu organizava o Simpósio Nacional sobre a Pesquisa e a Pós-Graduação em Música – SINAPPEM, no sentido de estruturar a pós-graduação e a pesquisa em Música no Brasil, eu havia ouvido falar da Associação Atravez, a ONG que o Professor Kater criou e dirigiu, junto com sua esposa Aude, entre 1985 e 2005, com a qual promoveu cursos regulares, oficinas, eventos e publicações.  Falava-se também do recém-criado Centro Paulista de Pesquisas Musicais, o CEPPEM, outra iniciativa pioneira de Carlos Kater para minimizar a significativa ausência, no país, de núcleos de estudos musicais voltados à estética, à história, à educação e, muito especialmente, à teoria e análise da música. No bojo das ações pioneiras da Atravez e do CEPPEM, surgiu em 1989 a primeira publicação brasileira dedicada à análise musical: “Cadernos de Estudos: análise musical”, produzido por uma equipe editorial jovem – alguns eram inclusive alunos de Kater – e um expressivo conselho consultivo, do qual tive a honra de participar junto a Oilliam Lana, Salomea Gandelman, José Maria Neves, Jamary Oliveira, Celso Chaves e até mesmo Koellreutter. Já no ano seguinte, 1990, surgiam os “Cadernos de Estudo: Educação Musical”. Interessante era o fato de cada número das duas revistas ser lançado com um evento; no caso da série Análise Musical, esse evento se intitulava “MusicAnálise”, apresentando em concerto ao vivo algumas das peças tratadas naquele número da revista, junto a falas de alguns autores e membros da equipe editorial. Havia, portanto, a importante e lúcida compreensão de que a análise dever ter como finalidade informar e formar a performance. O idealismo daquele empreendimento conseguia superar a falta de suporte financeiro, pois todas as tarefas de produção da revista eram realizadas por Kater e sua equipe voluntariamente, com uma editoração em Pagemaker e uma encadernação artesanal. Infelizmente, a falta de apoio institucional para suprir os custos básicos da impressão gráfica levaram essas duas importantes publicações a paralisarem em meados dos anos 1990. No entanto, a memória histórica dos periódicos brasileiros da música não pode deixar de reconhecer sua expressiva importância na trajetória do desenvolvimento da pesquisa em música no Brasil.

Se, por um lado, a utopia que impulsionou os Cadernos de Estudo foi, justamente, incentivar o estudo da produção musical nacional com ênfase na música contemporânea, assim objetivando o estudante ou o profissional de música no direcionamento de suas escolhas temáticas via informação técnico-estética, por outro lado, desde essa época Kater se preocupava em cativar o público não especializado com mídias atraentes e formatos compreensíveis, em apresentar estudos de forma saborosa e assimilável a um público largo. Exemplo disso é o seu estudo “Villa-Lobos e a Melodia das Montanhas: Contribuição à revisão crítica da pedagogia musical”, publicado em 1984 no periódico Latin American Music Review da Universidade do Texas. Nesse artigo, Kater apresenta sua tradução gráfica da composição de Villa-Lobos “New York Skyline”, uma espécie de ponte entre a obra e o ouvinte, conduzindo a curiosidade à inteligibilidade. Reconstituir o modelo fotográfico desconhecido dessa música a partir da derivação musical de Villa-Lobos, invertendo, assim, o percurso criativo original (da imagem à música), foi o quebra-cabeças que Kater montou para desvendar o modelo de uma sintaxe melódica esdrúxula, que o inquietou ao escutar essa música no início dos anos 1980. Esse trabalho foi revisado e ampliado no ano passado, estando publicado num interessante vídeo disponibilizado na plataforma YouTube[1], onde a modelagem gráfica de Kater se desdobra num cinetismo criativo, descritivo e didático acompanhando a partitura de Villa-Lobos.

Na condição de pesquisador-educador, Kater sempre se posicionou como mediador da sensibilização da escuta para a cognição fruitiva da música. Em seu projeto “A Música da Gente”, sua estratégia educacional é o processo criativo, a artesania composicional que valoriza a descoberta, o improviso e o experimento, estimulando a criatividade e, também, preparando a facilitação de uma escuta construtiva da música, isto é, a transição do impacto auditivo à revelação estética, principalmente na música nova. Do vídeo-documentário sobre este projeto, também disponibilizado no YouTube[2], destaco as seguintes frases pronunciadas pelas crianças do projeto: “A música da gente não tem fronteiras: está em todos os lugares: no ar, no chão, nos animais, nas coisas, no mundo e na gente.” “O som, o corpo e o pensamento criam a música.” “Os sons dos instrumentos que construímos são diferentes. Fazem com que a música que inventamos soe de um jeito só nosso.” Dentre esses instrumentos fabricados pelas crianças, destaco o interessante “seringofone”, um instrumento coletivo feito de apitos, seringas e mangueira. “A Música da Gente” foi implantado pela primeira vez em 2013, com patrocínio da Scania Latin America. Em 2014, o projeto já era considerado uma “revolução educacional” pelo jornalista João Marcos Coelho, em crítica publicada na Revista Concerto[3] sobre o CD lançado, ressaltando o despertar da criatividade inata da criança no trabalho realizado em Minas Gerais e em São Bernardo do Campo. Para Kater, a partir do mergulho no mundo sonoro e de uma escuta construída, tudo pode ser música. Música feita como exercício de humanidade, com poder transformador. Como ele mesmo diz nesse vídeo, “Construções ao nível humano vão além das construções cognitivas”.  E com muita propriedade, citando Oswald de Andrade, ele afirma: “a alegria é a prova dos 9”. A alegria estampada nas faces das crianças ao fazer música não só entusiasma o espectador como credita tanto o projeto quanto o poder transformador da música.

“A Música da Gente” é a versão mais aprimorada de outras realizações educativas anteriores de Kater, onde a criação tem papel preponderante. Uma das mais significativas, “La Manifestation”, projeto dedicado a Paulo Freire, revelou-se como processo dialógico, resposta ao desafio de constituição de uma Música do oprimido. “Música na Escola”, outro projeto pioneiro de educação musical, atendeu cerca de 4.000 professores da rede pública da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais, e serviu de referência para muitos projetos que se sucederam. “A Música nas Escolas da Gente” foi a variante do projeto para o ano 2022. Com as mesmas características, dirigiu-se desta vez à formação de professores da rede municipal de São Bernardo do Campo. “A Música da Gente” comemora neste ano 10 anos de existência, tendo sido utilizado em várias regiões do Brasil e atingido mais de 30.000 participantes. Segundo Kater, esse projeto é a forma que ele encontrou de integrar educação musical, criação de música, protagonismo social e formação humana.

Dos diálogos escritos que venho mantendo com Carlos Kater sobre seu exercício da profissão, extraio aqui um trecho que me parece especialmente revelador da sua personalidade profissional de educador:

Tenho a preocupação de que a música e a educação musical sejam úteis, sirvam às pessoas. Ajudem-nas a ser melhores, a suportar as barreiras, as durezas e violências impostas em geral por relações sociais injustas, presentes no dia-a-dia; auxiliem-nas a transcender os limites da vida ordinária entrando em contato com uma parte mais elevada e essencial que todos nós possuímos. Adoto o lema “Música é vida, música é movimento”, como já disse o movimento Música Viva, acreditando na capacidade que a música tem de propiciar que as pessoas saiam de seu lugar comum, experienciem novas formas de percepção, de vivência e sobretudo de entendimento, tornando-se, assim, capazes de ampliar a consciência que têm de si e do mundo[4].

Como compositor, a criatividade de Kater se dirige especialmente à Educação Musical. Ressalto aqui seu CD “O canto da eternidade”, lançado em 2020, contendo 11 canções sobre textos poéticos do filósofo francês Selim Aïssel. Ressalto também o EP Digital lançado em 2022 “Cantos para a Humanidade”, com 5 músicas.

Creio que muito eu já disse sobre o educador Carlos Kater, pois considero essa sua face profissional com relevante significação para o Brasil contemporâneo e com especial interesse para a Academia Brasileira de Música. No entanto, quero ainda ressaltar pontos importantes do seu perfil de musicólogo, o da sua formação na Universidade de Paris-Sorbonne, Paris IV, entre os anos 1977 e 1981.

Em 1989, enquanto professor Titular da Universidade Federal de Minas Gerais, Kater criou o Laboratório de Música Colonial Brasileira daquela instituição, enfatizando o levantamento de acervos musicais mineiros. Assim, pesquisou e classificou os acervos das cidades Santa Luzia e Itabira, organizando e microfilmando todas as partes de música. Destaco também os “Encontros com Villa-Lobos”, uma série de 18 entrevistas sobre Villa-Lobos que ele realizou na década de 1980 com importantes personalidades da música que conviveram com o compositor, como Anna Stella Schic, Arminda Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Eleazar de Carvalho, Francisco Mignone, Luiz Heitor Corrêa de Azevedo e Magdalena Tagliaferro. Essas “Conversas com Villa-Lobos” vêm tendo publicação eletrônica mensal no site de Kater[5]. Ao término de um ano de lançamentos, será publicado o Ebook interativo “Encontros com Villa-Lobos”, contendo a totalidade das 18 conversas[6]. Destaco ainda seu livro “Eunice Katunda: musicista brasileira”, lançado em 2020, e sua tradução do livro de Anton Webern “O caminho para a nova música”, com duas edições: uma de 1984 (Editora Novas Metas) e outra de 2020 (Edusp).

São ideias, iniciativas e ações como estas que mencionei, além de tantas outras que o tempo restrito desta sessão não me permite citar, que justificam a condução de Carlos Kater a ocupar a Cadeira 16 desta Academia. Essa condução deverá motivar e solidificar o envolvimento desta instituição com a Musicologia e, muito especialmente, com a Educação Musical, ao modo que nos cabe: esclarecedor dos métodos e meios eficazes para a nossa cultura, para o nosso complexo tecido social e para a nossa época histórica, sempre lembrando e valorizando as nossas tradições. Esta saudação, portanto, parece-nos alvissareira de motivações, incrementos e atualizações na Academia Brasileira de Música, visando, especialmente, seu desempenho sociocultural.

Professor Carlos Kater, desejamos que sua integração a esta Academia seja para si tão auspiciosa quanto a sua o é para todos nós. Seja muito bem-vindo!

[1] In: https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=JrlKxY9BqeQ.

[2] In: https://www.youtube.com/watch?v=AE9z1MCL9Ms.

[3] Número de 24 de novembro de 2014.

[4] In: “Notas”. Documento digital enviado a Ilza Nogueira em 3.3.2023, com 5 páginas, contendo material (apresentação profissional resumida) para subsidiar esta Saudação.

[5] In: https://www.carloskater.com.br/entrevistas.

[6] Entrevistas a serem publicadas ainda: Souza Lima; Carmen Fernandes; Homero Magalhaes; Pierre Vidal; Eunice Katunda; Gerardo Parente; José Vieira Brandão; H.J. Koellreutter; George Olivier Toni; Salomea Gandelman; Felicia Blumental.

Rua da Lapa, 120/12º andar – Lapa
CEP 20021-180 - Rio de Janeiro -RJ

+55 21 2292-5845 | 2221-0277 | 2242-6693

https://www.youtube.com/c/AcademiaBrasileiradeM%C3%BAsicaABM https://www.facebook.com/abmusicabr https://www.instagram.com/academiabrasileirademusica/

Dúvidas? Entre em contato