
Por Ricardo Tacuchian
(Confrade de VICENTE SALLES na ABM e autor de “Estruturas Verdes”, para violino, violoncelo e piano,
dedicada a Vicente Salles e sua esposa a violinista Marena Salles)
No último dia 27 de novembro, VICENTE SALLES (Nascido em Vila do Caripi, Município de Igarapé-Açu, PA 1931 – Falecido no Rio de Janeiro, RJ, 2013) completaria 90 anos. Como imortal da ABM, continua vivo, através de valiosa bibliografia que deixou para a Musicologia Brasileira. O legado de VICENTE SALLES para a cultura brasileira é tão vasto quanto a própria Amazônia. Foi uma vida inteira resgatando a memória da região Norte, registrada em coleções de livros, periódicos, partituras, recortes de jornais e materiais especiais, como discos, fitas gravadas e fotografias. A COLEÇÃO VICENTE SALLES, hoje no Museu da Universidade Federal do Pará, é uma referência, em Belém, como fonte de pesquisa sobre folclore, música, cultura afro-brasileira, história, teatro e literatura. Lá se encontram todos os programas “O assunto é folclore”, feitos pelo ilustre etnólogo e transmitidos, na década de 60, pela RÁDIO MEC. Aliás, o folclore foi um dos destaques das pesquisas de VICENTE SALLES, como coleção de folhetos de cordel do Pará e do Nordeste e as fitas de rolo magnetofônicas onde estão registrados folguedos populares e músicas paraenses. Sobre este último item, a coleção guarda cerca de 3 mil partituras de compositores paraenses ou que viveram em Belém e mais de 400 discos em diferentes formatos fonográficos. A hemeroteca é preciosa: 70 mil recortes de jornais e revistas da região Norte, sobre temas de cultura popular e afro-brasileira, artes plásticas, literatura, teatro e, naturalmente, seu maior interesse, a música. Salles sempre viu as bandas de música de sua região como instituições sociais, culturais e educativas. Escreveu cerca de uma dezena de textos sobre o assunto e o livro “Sociedades de Euterpe” (Brasília, DF: Edição do Autor, 1985), em que ele estuda as bandas de música no Grão-Pará.
Em seu livro “Santarém: uma oferenda musical” (Belém: Serviço de Imprensa Universitária, 1981), Salles faz um histórico da vida musical de Santarém desde 1661, quando foi fundada a missão jesuítica pelo padre João Felipe Bettendorff. As primeiras bandas de música surgiram, naquela cidade, em 1878.
SALLES dedicou um espaço especial, em sua bibliografia, ao estudo da presença do negro na cultura paraense. Sobre o assunto, publicou cerca de 30 textos. Em 1971, publicou, em um alentado volume, a obra “O negro no Pará sob o regime da escravidão” (Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas; Belém: Universidade Federal do Pará, 1971. Coleção Amazônica, Série José Veríssimo). Esse livro serviu de base para a produção do DVD “O negro no Pará. Cinco décadas depois…” (Instituto de Artes do Pará), em que Vicente Salles reafirma a importância relevante do negro na Amazônia, ao contrário do que se dizia na historiografia dos anos 1950.
SALLES pesquisou a trajetória musical do grande operista paraense José Cândido da Gama Malcher e suas interseções com Carlos Gomes, que viveu seus últimos dias em Belém e que, também, mereceu alguns textos inspirados de VICENTE SALLES. Outros compositores paraenses ilustres que mereceram estudos sobre sua vida e obra foram Meneleu Campos, Jayme Ovalle, Maestro Isoca, Waldemar Henrique e Paulino Chaves, entre muitos outros.
Em 1980, SALLES publicou seu mais importante livro, entre 24 publicados: “A música e o tempo no Grão-Pará” (Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1980). É um dos mais importantes livros sobre a história da música no Brasil e uma análise da sociedade do Norte do país, no período colonial. VICENTE SALLES apresenta um mundo amazônico desconhecido para os artistas e intelectuais de outras regiões do país, revelando a aproximação de Belém muito mais estreita com a Coroa, em Lisboa, do que com a capital, na Bahia. Nesse livro, o autor procura esclarecer “o papel pedagógico e político da música na formação da sociedade paraense”. Salles mostra a importância do índio na formação do perfil cultural da região. Este valioso livro é dedicado a seu conterrâneo e confrade, o compositor Waldemar Henrique (1905-1995). Dez anos antes dessa obra monumental, SALLES já havia lançado um outro livro, “Música e músicos do Pará” (1970), que, até certo ponto, foi o precursor de “A música e o tempo no Gão-Pará”.
VICENTE SALLES viveu em três capitais históricas: Belém, Rio de Janeiro e Brasília. Mas seu coração estava sempre voltado lá para cima do mapa do Brasil. Imagino sua tristeza, caso fosse vivo hoje, diante da avassaladora derrubada da Floresta Amazônica que tanto ele amou. Enquanto a Floresta está se transformando em Savana, VICENTE SALLES perambula pelo que sobrou da Mata, pelos corredores do Museu da UFPA onde está todo o seu acervo, no coração e na memória de seus familiares, amigos, discípulos e confrades da Academia e nas águas da baía de Guajará, onde suas cinzas foram lançadas, de acordo com o próprio desejo. Agora, ele dá aulas para as Iaras.