Notícias

Nelson Freire: Um Gigante do Teclado | por Ronaldo Miranda

"Nelson tocou gloriosamente e, do repertório, só me lembro de ter presenciado a melhor Fantasia de Schumann que ouvi na minha vida."

Nelson Freire: Um Gigante do Teclado | por Ronaldo Miranda
Compartilhe:

Por Ronaldo Miranda

 

Conheci Nelson Freire de perto a partir de 1974, quando me tornei crítico de música do Jornal do Brasil. Ele era empresado pelo então jovem pianista Jacob Herzog e, de cara, eu enfrentei – já como crítico – um recital solo dessa figura maior do pianismo brasileiro, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Casa superlotada, como era praxe nas suas apresentações, Nelson tocou gloriosamente e, do repertório, só me lembro de ter presenciado a melhor Fantasia de Schumann que ouvi na minha vida.

Anos depois, ao final da década de 1980, ouvi novamente Nelson tocar essa Fantasia, no Auditório Claudio Santoro, em Campos do Jordão. E reconfirmei minha impressão: ninguém no mundo toca essa obra difícil e complexa, em três monumentais e expressivos movimentos, melhor do que ele.  Gravações e vídeos estão aí para provar, embora seja uma pena que a Decca não tenha incluído a Fantasia no seu último CD Schumann.

Nelson passou a ser empresado por Sula Jaffé e eu, como crítico, fui acompanhando sua trajetória e convivendo à média distância com ele. Ao vivo, sua carreira era esplendorosa. No disco, havia-se rompido o seu contrato com a CBS americana. Apareceram então as gravações excepcionais para a Deutsche Grammophon com Martha Argerich (Bartók, Ravel, Rachmaninoff, Lutoslawski) e o seu CD solo dedicado a Villa-Lobos (TELDEC), divulgado especialmente na Alemanha, Japão e Brasil.

Originalmente gravado em 1974, “Nelson Freire Interpreta Villa-Lobos” é uma pérola sonora que inclui integralmente a Prole do Bebê número 1, as Três Marias, o Prelúdio das Bachianas Brasileiras 4 e o visceral e telúrico Rudepoema. Uma homenagem de Nelson ao nosso compositor maior numa gravação gloriosa.

Timidamente, nos anos 80, mostrei a Nelson algumas composições minhas e, ao ver a partitura de meu Concerto para Piano (1983), ele sentenciou: “acho a obra pouco virtuosística, Ronaldo”.  Mostrei-lhe então minha Toccata (1982), para piano solo, e ele mineiramente retrucou: “Nossa! Essa está virtuosística demais”… Para minha surpresa, em 1986, Nelson sentou-se na plateia da Sala Cecília Meireles para ouvir a estreia carioca do meu Concertino, eu ao piano, e ao final comentou: “Gostei muito da obra, mas gostei mais do pianista.”

Esse era o Nelson: sincero e atento. Quando Claudio Santoro morreu, em 1989, ele incluiu sua maravilhosa Toccata no repertório de seu recital solo no Theatro Municipal do Rio. Foi um acontecimento. Jamais se ouviu ao vivo aquela esplêndida Toccata tão bem tocada. E eu me perguntei porque ele não incluía com mais assiduidade o repertório brasileiro nos seus concertos!

A resposta veio anos mais tarde, em 2012, com o CD “Brasileiro – Villa-Lobos & Friends”, gravado por Nelson para a Decca.  São cerca de 20 faixas que mostram inúmeras obras de Villa-Lobos (Valsa da Dor, A Lenda do Caboclo, Alma Brasileira, New York Skyline e outras), além de peças de Oswald (Valsa Lenta), Barrozo Neto (Minha Terra), Levy (Tango Brasileiro), Lorenzo Fernandez (Três Estudos em Forma de Sonatina),  Mignone (Valsa Elegante, Congada) e mais as célebres Toccatas de Santoro e de Guarnieri.

Gravado com a qualidade de sempre, o CD “Brasileiro” de Nelson Freire contou com precioso texto de encarte de Manoel Correa do Lago e se constituiu num sucesso mundial de público e crítica. Em novembro de 2013, o disco recebeu em Las Vegas o prêmio de “melhor álbum de música clássica” no 14º Grammy Latino.

Isolado e deprimido após a queda (e consequente cirurgia entre o ombro e o braço direito), que sofreu ao final de 2019, Nelson Freire não voltou a se apresentar em público até a sua morte, há cerca de um mês.  Estava numa fase gloriosa, realmente no apogeu da sua carreira. O contrato com a Decca, iniciado em 2006 com a gravação dos Dois Concertos para Piano de Brahms, com Riccardo Chailly e a Gewandhaus de Leipzig, já havia gerado uma dezena de discos maravilhosos, dedicados a Schumann, Bach, Brahms, Liszt, Chopin, Beethoven, Debussy, compositores brasileiros e diversos autores no último CD “Encores”.

Dessa preciosa discografia, nada se iguala aos Dois Concertos de Brahms,um CD duplo que não tem paralelo, especificamente em relação ao repertório gravado. Talvez esse registro sonoro possa ser comparado à gravação que Maurizio Pollini realizou dessas duas obras monumentais com Claudio Abbado e a Filarmônica de Berlim. Mas, cá entre nós, a versão de Nelson, Chailly e a Gewandhaus me parece ainda melhor.

Perdemos um gigante do teclado. RIP, Nelson Freire

Rua da Lapa, 120/12º andar – Lapa
CEP 20021-180 - Rio de Janeiro -RJ

+55 21 2292-5845 | 2221-0277 | 2242-6693

https://www.youtube.com/c/AcademiaBrasileiradeM%C3%BAsicaABM https://www.facebook.com/abmusicabr

Dúvidas? Entre em contato