
Nascido em Lagów, Polônia, em 5 de setembro de 1931, Henrique Morelenbaum – hoje, às vésperas de completar seu 90º aniversário – veio para o Brasil com 3 anos , naturalizando-se brasileiro aos 16 anos de idade. Estudou violino e viola com Paulina d’Ambrosio na Escola de Música da UFRJ, onde se graduou também em Composição e Regência. Participou, como violista, de importantes quartetos e integrou o naipe de cordas da Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde – numa noite de 1959 – foi chamado a substituir o regente que dirigia o espetáculo de balé estrelado por Margot Fonteyn. Era o início de uma carreira fulgurante que o colocou entre os mais destacados maestros brasileiros na segunda metade do século 20.
Morelenbaum se tornou regente da Orquestra Sinfônica do Municipal Rio, dividindo com Mário Tavares uma tarefa importantíssima no nosso grande teatro de ópera. Paralelamente, regeu durante muitos anos o Coral do Instituto Israelita Brasileiro e tornou-se Professor de Harmonia, Contraponto e Fuga da Escola de Música da UFRJ e, mais tarde, Professor de Composição da mesma instituição.
Foi nesse momento que o conheci e me tornei seu aluno. Cursei Harmonia, Contraponto e Fuga, sob sua orientação, nos anos de 1968, 1969 e 1970. Essas disciplinas preenchiam predominantemente os três primeiros anos do Curso de Graduação em Composição. Seguiam-se três anos da disciplina Composição, que seriam ministrados por José Siqueira, grande compositor e professor, responsável pela formação de Ricardo Tacuchian, Jorge Antunes e outros importantes nomes do cenário musical brasileiro. Mas aconteceu o imprevisível : Siqueira foi aposentado pelo regime militar e Morelenbaum o sucedeu como professor de Composição.
Ficamos assim, sob a sua responsabilidade, nós, os novos alunos do Curso – eu, Cirlei de Hollanda, Mirian Rocha Pitta, Aída Cuba e Vanda Bellard Freire – ao lado de antigos alunos, pouco à nossa frente, como David Korenchendler, Ian Guest e Vania Dantas Leite. Creio que o maior mérito de Morelenbaum, como professor da matéria, foi deixar cada aluno seguir o caminho musical por ele próprio escolhido. Jamais impôs um estilo, uma linguagem, um movimento estético exclusivo. Forneceu a todos uma sólida base técnica e mostrou à sua classe um panorama eclético da criação musical contemporânea.
Nesse sentido, sua atividade como regente foi um caminho mágico para informar e seduzir seus alunos . Éramos frequentemente convidados a assistir aos ensaios das peças que passaram pelas mãos de Morelenbaum como regente, entre as quais se incluíram alguns luminares da produção musical no século 20. Foi ele o responsável pelas estreias brasileiras do Kol Nidrei, de Schoenberg; das óperas Peter Grimes, de Britten, e The Rake’s Progress, de Stravinsky; do Dies Irae, de Penderecki; do Concerto para Orquestra, de Lutoslawski, e da Sinfonia, de Luciano Berio, com a inesquecível participação dos Swingle Singers.
Além do repertório internacional, Morelenbaum foi também responsável por inúmeras primeiras audições mundiais brasileiras dos mais diversos autores, como Mignone, Marlos Nobre, Almeida Prado, Radamés Gnattali, Aylton Escobar e Edino Krieger, entre muitos outros. Sua participação como regente, ao lado de Mário Tavares, foi decisiva nos Festivais de Música da Guanabara (1969, 1970) que consagraram os principais nomes da nossa criação musical na segunda metade do século 20.
O que ouvíamos nos ensaios levávamos para a sala de aula. Professor e alunos discutíamos as novas obras, as novas tendências : a exuberância fulgurante dos Poemas do Cárcere e da Missa Brevis, de Aylton Escobar; as propostas aleatórias do Concerto Breve para Piano e Orquestra, de Marlos Nobre; o requinte e a originalidade dos Pequenos Funerais Cantantes, de Almeida Prado; a força impactante das novas obras dramáticas baianas, como a Procissão das Carpideiras, de Lindembergue Cardoso, e a Heterofonia do Tempo, de Fernando Cerqueira. Para citar apenas alguns títulos nacionais que povoaram o universo brasileiro sonoro daquela época, no âmbito da música contemporânea.
Era estratégica a atitude de Morelenbaum como mestre, pois permitia que os alunos recentes (eu por exemplo) se reunissem com os mais experientes, para que todos pudessem discutir o que se passava na esfera musical do momento. E cada um podia também mostrar aos demais a sua produção (mesmo se ainda engatinhando no contraponto) para se sentir acolhido no grupo.
Tendo me graduado inicialmente em Piano, demorei bastante para concluir meu Curso de Composição. Minha trajetória levou-me ao Jornal do Brasil (desde 1966) e minha vida profissional inicial me exigiu um diploma de Jornalismo. Parei então o estudo da Composição para cursar Jornalismo, na própria UFRJ, mas voltei à Graduação em Composição logo em seguida. Em 1976, ano em que me graduei, finalmente, Morelenbaum olhou-me fixamente e me disse com sua sabedoria judaica : “Deus dá os talentos mas cobra a sua utilização. Você não está utilizando plenamente os dons que Deus lhe concedeu”.
Essa frase me calou fundo e, no ano seguinte, 1977, pus mãos à obra. Inscrevi-me no Concurso de Composição para a II Bienal de Música Brasileira Contemporânea e obtive o 1º lugar em música de câmera com a obra Trajetória, sobre texto de Orlando Codá. Começou aí, aos 29 anos, minha carreira profissional como compositor.
Na década de 1980, aperfeiçoei meu contato com o mestre. Tornei-me seu aluno de Mestrado, compondo como objeto do Curso meu Concerto para Piano e Orquestra, e ingressei na Escola de Música da UFRJ como Professor Auxiliar de Composição, trabalhando inicialmente como seu assistente. Morelenbaum alternava seu desempenho como professor e regente com a administração musical. Foi o primeiro diretor da Sala Cecília Meireles (1965), voltando a dirigi-la duas décadas depois, quando se tornou responsável pela primeira grande reforma do prédio (1988/89) e pela criação da Associação dos Amigos da Sala Cecília Meireles. Foi ainda diretor do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Pouquíssimas vezes Morelenbaum regeu minhas obras orquestrais. Ele me dizia que preferia ficar distante, como regente, daquilo que eu produzia. Mas guardo no coração duas performances inesquecíveis. A primeira ocorreu no Theatro Municipal do Rio de Janeiro ao final da década de 1980, com a apresentação das minhas Variações Sinfônicas (minha primeira obra orquestral, encomendada e estreada por Eleazar de Carvalho), num belo concerto que teve como solista Nelson Freire em Rachmaninoff (a Rapsódia sobre um Tema de Paganini, um clássico tema com variações). A última performance ocorreu já na primeira década dos anos 2000, por decisão de João Guilherme Ripper, que, como diretor da Sala Cecília Meireles, escolheu Morelenbaum para reger a primeira audição de minha Missa Brevis – o Sagrado e o Profano em Celebração da Capela Real, obra encomendada pela Sala para comemorar os 200 anos da chegada ao Brasil de D. João VI e da corte portuguesa. O concerto foi realizado em agosto de 2008 e Morelenbaum dirigiu a OSB com mão de mestre. Preparou com esmero essa peça dramático-musical, contando com participações especialíssimas de Adriana Clis, como solista, e do Coro Sinfônico do Rio de Janeiro, preparado por Júlio Moretzsohn. O processo de ensaios foi um deleite e Morelenbaum se superou na condução dessa estréia. Foi a última vez que o vi reger.
De todas as suas qualidades em nosso longo convívio , talvez eu possa resumir o seu grau de importância para a minha formação musical com uma única frase, que aparece como dedicatória na página inicial da partitura de meu Concerto para Piano e Orquestra: “Para Henrique Morelenbaum, que me ajudou a descobrir uma linguagem própria”.